9.3.09

Eremita: Utopia


   A sua respiração ecoava um silêncio sonoro na escuridão iluminada de esperança. De olhos bem abertos, entregues ao ar estático do quarto vestido de breu, sentia o vazio presente nos metros circundantes. A saudade arrastava-se, aumentando à medida que percorria, a passos de duende, pelo interior da sua pele. Uma comichão seca, persistente, que parecia vir da sua essência. Saudade. Uma fome que seria saciada brevemente.
   Levantou-se pouco depois do acordar do Sol. A luz ainda era fraca, cinzenta, deixando a casa de um tom triste e alegre. A ânsia que o picava há dias agora explodira, gritando ao seu corpo “despacha-te!”. Comeu apressadamente e vestiu-se de forma indecisa mas desinteressada.
   Não estava satisfeito com o facto de ter de sair da sua calma. Teria de voltar a ver aqueles porcos descontrolados cuja mente cega os levara à sua realidade estagnada. Abençoados pelos anjos da mentira, viviam escravos da pseudo-felicidade que lhes fora entregue em troca de números.
   Mas o sentimento era demasiado ardente para resistir. A ânsia dominava-o.
   Saiu para enfrentar a afronta à existência humana, para trazer consigo a pérola do seu desejo. O sentimento que lhe interessava. Ao percorrer as planícies nuas e honestas tentou respirar a substância pura que o permitia sobreviver. As planícies da Natureza. Planas, nem sorrindo nem chorando, nem ausentes nem cruéis. Contrastavam com as planícies preenchidas por embalagens. Sedutoras, perversas, dúbias e vazias. A perfeição vazia. A morte de Deus materializada. O Inferno bíblico mascarado. Se gritarmos, ouvimos apenas o nosso eco, assustado, descrevendo o vazio. Vazio. Um tudo vazio.
   Ao chegar ao seu meio-destino viu o negro brilhar. Brilhava intensamente um nada poderoso. Mas, no meio de tanto negro, algo captava a sua atenção. Ela.
   Uniram-se num beijo bruto, delicado, precioso, explosivo, libertador, gritante. Ensurdecia todos os seus sentidos. Nada ouvia. Nada via. Nada cheirava. Apenas a textura e o sabor reluzente e impossível dos lábios dela. Respiraram um abraço, abrigando-se do fedor pútrido que os rodeava.
   Deixaram o antro comum que crescia como praga, chegando ainda a tempo de verem o pôr-do-sol puro e simples.
   Caiu a noite, atraindo os corpos de ambos um para o outro.

Filipe Dumas, 7 de Março de 2009

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